Categoria: Internet "Tinoco sem Tonico - Sozinho na estrada e nos palcos canta para viver, aos 88 anos"


Dez e meia da manhã. Tinoco estava terminando de se vestir quando o encontrei no último sábado de agosto em seu quarto no "New Life", um apart-hotel em Piracicaba, a 160 quilômetros de São Paulo, onde se apresentaria à noite no Teatro Municipal, com a banda de rock caipira "Os Pamonheiros". Parecia cansado. Depois de fazer um show em Pirajuí na véspera, ele rodou com Zé Carlos, seu filho, motorista e empresário, mais 220 quilômetros até chegar aqui por volta da meia-noite. Num posto da estrada, fez um lanche rápido, que foi seu jantar: misto-quente e suco de milho.Aos 88 anos, Tinoco está habituado a essas andanças entre estradas, palcos e picadeiros, que começou com o irmão Tonico quando tinha 15 anos; mas nessa noite não conseguiu dormir direito. Levantou-se cedo, como de costume, com o raiar do sol, tomou café e remédios, e deitou-se de novo. Dona Nadir, sua inseparável companheira de viagens, com quem está casado faz 56 anos, desta vez não veio com ele. Na mesma hora em que Tinoco se apresentava em Pirajuí, ela foi operada para a retirada de um tumor do pâncreas, no modesto Hospital São Cristóvão, na Mooca, zona leste de São Paulo.Só quando lhe perguntei se ele ainda cantava apenas por gosto ou por necessidade - "as duas coisas" respondeu-me Tinoco - é que fui entender por que não estava ao lado da mulher nessa hora. José Perez, o Tinoco, um dos maiores nomes da história da música popular brasileira, ainda está em atividade porque precisa, e trabalha pesado para sobreviver. Com 73 anos de carreira, completados duas semanas antes da nossa conversa, ganha apenas R$ 1 mil por mês do INSS, aposentadoria que não dá para pagar suas contas, os remédios e as dívidas que se acumulam desde a morte de Tonico, em 1994, com seus cachês cada vez menores.Autor junto com Tonico de mais de 1.200 músicas gravadas por eles e outros cantores em milhões de discos - ele não sabe dizer quantos - recebe de direitos autorais a fortuna de R$ 2 mil a cada três meses. Pelo contrato com a Nossa Caixa, ganha R$ 2.500 por show para se apresentar nos sorteios semanais da Loteria Estadual, mas tem de arcar com todas as despesas (transporte, hospedagem, refeições e impostos). No ano passado, para complicar sua situação, levou uma mordida de aranha venenosa na perna que o deixou cinco meses sem andar, sem poder trabalhar.Por isso, ainda tem de rodar de 1.500 a 2.000 quilômetros para fazer de dois a três shows a cada fim de semana, apresentando-se em teatros, circos, rodeios, festas de casamento ou batizados, o que aparecer, com o cachê cobrado de acordo com o freguês. Em Piracicaba, por exemplo, como os músicos da banda "Os Pamonheiros" são seus amigos, aceitou receber R$ 1 mil por sua participação no show, além de hospedagem e comida. O filho ainda tentaria salvar o dinheiro gasto com combustível. Alguma coisa está errada, pensei comigo, quando eu recebo por palestra bem mais do que pagam para um artista do porte e da história de Tinoco.Fora da grande mídia e do star-system, há tempos não ouvia falar de Tinoco, desde que escrevi, em 1985, para a Folha de S. Paulo, uma reportagem sobre os 50 anos de carreira dessa dupla que se tornou um símbolo do Brasil caipira. Quem o reencontrou e me falou dele foi minha filha Mariana, jornalista da melhor qualidade, durante uma reportagem sobre longevidade para o SBT Repórter. Nem sabia que ele ainda estava trabalhando. Por isso, foi com grande alegria que reencontrei no hotel em Piracicaba um Tinoco altivo, cabeleira branca de índio velho contador de causos, feliz com o show que iria fazer à noite, apesar do abalo com a cirurgia de dona Nadir.Sem perder tempo, sentamo-nos à mesa da saleta do apartamento. Para meu desespero, pois o gravador estava sem fita, que meu parceiro fotógrafo, Carlos Silva, tinha ido comprar, Tinoco começa a falar sem pausas. Conta num embalo só sua vida, desde o comecinho, na zona rural de Pratânia, município hoje com sete mil habitantes, antigo distrito de Botucatu, no interior paulista. Filho de Salvador Perez, descendente de espanhóis da região de León, lavrador errante em terra alheia, e de Maria do Carmo, descendente de índios, terceiro de nove irmãos, Tinoco pouco foi à escola e não queria saber de trabalhar na roça.Com João, o Tonico, irmão quatro anos mais velho, começou de menino a cantar, compor e tocar cavaquinho - "inventava modinhas", como ele diz. Na estrada desde adolescente, quando está em São Paulo quase nunca sai de casa. Só pensa em descansar ao lado da mulher, em seu modesto apartamento na Mooca, no mesmo prédio em que Tonico morreu, ao cair da escada.Criado no meio do mato vizinho a uma comunidade indígena, entre onças, jacarés, tatus, porcos do mato, cobras e capivaras, "tudo quanto é tipo de bicho", conta que não tinha nem folhinha em casa e nunca sabia que dia que era.

Veja a entrevista na integra:

http://www.revistabrasileiros.com.br/edicoes/14/textos/165/