Aos 90 anos, ex-atleta francês celebra trajetória heroica no atletismo mundial


Francês Alain Mimoun quase perdeu a perna na Segunda Guerra, mas superou o ferimento e duelou durante anos com Emil Zátopek pelo ouro

Por GLOBOESPORTE.COMRio de Janeiro
Uma lenda viva. Assim pode ser considerado o senhor francês, hoje com 90 anos, Alain Mimoun. Sua história de amor ao esporte é um exemplo de persistência e superação: um imigrante argelino que virou combatente na Segunda Guerra Mundial, quase perdeu uma perna e mesmo assim virou corredor. Contemporâneo de um dos maiores gênios do atletismo, Mimoun parecia fadado à prata. Mas não desistiu de ocupar o lugar mais alto do pódio até o último desafio.
Nascido em uma família pobre na Argélia, então colônia da França, ele sabia que para melhorar de vida precisaria deixar o país. Para conseguir a cidadania francesa, a saída que encontrou foi se alistar no Exército. O que ele não imaginava é que a Segunda Guerra Mundial explodiria pouco tempo depois e que seria obrigado a seguir para o front.
- Eu era responsável por cuidar das minas terrestres, sempre sob fogo intenso. Eles colocavam os imigrantes nestes postos mais perigosos. Marroquinos, argelinos. Diziam que não éramos franceses de verdade - relembra.
O futuro atleta aguentou cinco anos de trincheiras sem sofrer um arranhão sequer. Até que um dia, vasculhava minas terrestres na Itália quando seu regimento foi surpreendido por um bombardeio. Na fuga, estilhaços de uma bomba dilaceraram seu pé esquerdo.
Alain Mimoun recebendo com champanhe a equipe do EE em Paris (Foto: TV Globo)Alain Mimoun  recebe a equipe do EE em Paris
(Foto: TV Globo)
- Eles me levaram correndo para os hospitais porque minha lesão era grave. Assim que chegamos, os médicos quiseram amputar minha perna, mas não deixei. Disseram que eu poderia morrer assim, mas decidi correr o risco. Fiquei 18 dias internado em um hospital em Nápoles, e mais um mês inteiro hospitalizado na França. Até hoje, quando faz frio, sinto dores no pé. Vai ser assim até a minha morte.
Para fortalecer a perna combalida, Mimoun começou a correr e descobriu que tinha talento e muita resistência física para grandes distâncias. Criou sua própria técnica de respiração, constante, no ritmo das passadas. Em 1948 ganhou uma vaga para representar a França na prova dos 10 mil metros nos jogos de Londres. Nesse mesmo período, despontava para o mundo o tcheco Emil Zátopek, a "Locomotiva Humana", um dos maiores corredores de todos os tempos.
Zátopek não deu chances a ninguém. Mimoun chegou em segundo. Nas Olimpíadas de 1952, o resultado se repetiu. Mimoun pendurou mais duas pratas no peito, nos 5.000 e nos 10.000 metros. Zátopek venceu os dois eventos e ainda garantiu a medalha de ouro na maratona. Apesar da rivalidade nas pistas, fora delas, nada de rusgas.
- O Emil Zátopek pra mim foi um presente, um presente de Deus. Sem Emil Zátopek, eu não seria nada. Nada. Ele foi ao mesmo tempo meu mais aguerrido adversário e meu melhor amigo.
Em 1956, na Austrália, a história tomou um novo rumo. Mimoun chegava a sua terceira Olimpíada, com idade avançada, mas uma ideia fixa: correr pela primeira vez os 42 km da maratona, a mais desgastante prova dos jogos. E Zátopek também competiria.
- Estava quente, muito quente, 40 graus. Acho que foi a maratona mais quente de toda a história. O Zátopek virou pra mim antes da largada e disse: "Hoje todos nós vamos morrer".
Alain Mimlun e Emil Zatopeck (Foto: Divulgação)Alain Mimoun e Emil Zatopek (Foto: Divulgação)
Mas o calor não era tão incômodo para quem havia vivido na Argélia, país do Norte da África. Com a alta temperatura a seu favor, Mimoun tomou a dianteira e entrou sozinho no estádio, sem ameaças. Após cruzar a linha de chegada, seguiu para a beira da pista para torcer e incentivar o maior rival e amigo: Zátopek.
- Eu corri ali pro lado da pista pra ver onde ele estava e fui aplaudindo seu caminho. Ele chegou exaurido, em sexto lugar, e caiu de joelhos. Eu fui até lá, o levantei e disse: "Emil, Emil, você não me vai dar os parabéns? Eu ganhei, finalmente!" O rosto dele se iluminou. Ele me abraçou e disse: "você é um grande campeão. Estou contente por você." Nunca vou me esquecer disso. Ele comemorou como se fosse uma vitória pessoal.
Em plena forma aos 90 anos, Mimoun ainda dirige, treina, cuida de seu museu particular e faz planos. Quer acompanhar os Jogos do Brasil, em 2016.
- Quando eu soube que o Brasil ficou com os jogos, disse à minha esposa: "Bravo, bravo!" Fiquei contente. É um povo jovem, que adora esporte. Eu adoro conversar com jovens, contar um pouco da minha história, tentar fazer a diferença na vida deles. Acho que eu tenho algumas coisas a ensinar - conclui o campeão.